Março e Abril/2020: Últimos meses na casa da Vila Rica, área residencial. Vista
maravilhosa das montanhas no horizonte. Pássaros ao longe. O silêncio de anos fora
quebrado pelas máquinas e sirenes de construção civil. Apitos repetitivos. Pedras
rolando das caçambas. Como os trabalhadores não param, nem nos feriados? O som é só
um prenúncio do que virá. E do que não verei mais. Silêncio à noite. Nenhum “Fora
Bolsonaro”. Nenhum panelaço ou janelaço. Maio e Junho/2020: Mudei-me para a região
central. Barulho de motos e carros durante a semana. Alguns pássaros ao longe. Dia
23/05: Um carro de som (na verdade, vi que era um ônibus depois) pedia doação de
alimentos. Era de uma igreja evangélica de Nazaré Paulista. E dizia: “Hoje é Natal”!
Doei um pacote de bolacha. Fiquei pensando que podia realmente ser Natal. E não
termos mais pandemia e ‘pandemônio’. Será? Dia 24/05: Depois de tanto tempo, chuva!
O melhor barulho! Eu descobri uma coisa que me deixou triste: os pássaros que eu
ouvia da janela na nova casa eram de uma loja que se localiza a alguns metros de
minha casa. Presos. Este lugar estava aberto no dia de Corpus Christi, dia 11/06.
Casa geminada. Vizinha faz barulho. Móveis arrastando, sempre em torno de 23h.
Gritos com os filhos. Nunca ouvi suas vozes. Ultimamente, diminuíram os ruídos.
16/06. O barulho da casa vizinha voltou. Falo alto. Falo baixo. Há um galo que canta
de madrugada, entre 6h e 7h da manhã ou por volta das 10h da manhã. Da distância que
ouço, não me incomoda.
Não houve um momento de silêncio propriamente dito durante o meu isolamento. Houve,
sim, a diminuição do ruído, a substituição dos sons, mas não existiu um único
momento de silêncio. Deixei de ouvir aviões, ônibus, carros e britadeiras e passei a
ouvir pássaros, crianças, discussões vizinhas e os janelaços. Em alguns momentos
isso causou em mim uma espécie de cólera. Essa nova configuração sonora do meu
cotidiano implicava saber que havia uma configuração diferente do mundo externo ao
meu apartamento. E depois de um período esse sentimento se atenuou, mas não mais por
estar ciente dessa nova configuração e enfim aceitá-la, e sim por saber de seu
completo abandono. Os carros, as britadeiras e as vozes que passam pelas ruas em
aglomerações, estavam todos presentes, de volta em alto e bom som, mas não no
momento certo. Cada novo ruído agora se parece com uma espécie de lembrete de cada
uma das perdas que sofremos e das que ainda vamos sofrer. As construções que rodeiam
o meu lar, as buzinas, as conversas e os helicópteros me fazem lembrar a todo
instante como ainda há muito a ser enfrentado. Não sei se haverá um segundo
isolamento como ocorreu em março, já não ouço mais os pássaros e os vizinhos agora
não discutem mais pois retornaram aos seus ambientes de trabalho. Em breve as
crianças voltarão para as escolas, e os janelaços já não ocorrem mais. Entretanto,
enquanto escrevo esse texto ouço as buzinas dos entregadores em protesto e os
helicópteros que acompanham a movimentação, e essa é a primeira vez desde o fim do
isolamento que um som tão estridente me vez sentir uma espécie de alento em vez de
pura angústia.
Nos primeiros dias, tive uma sensação de que minha região estava mais silenciosa do
que antes. Talvez as pessoas estivessem ainda chocadas com o início do isolamento.
Mas as semanas (sempre iguais) foram passando e a naturalização também. Primeiro,
notei que na verdade não estava mais silencioso do que antes da pandemia, apenas os
barulhos eram outros – as conversas de quem andava na rua foram substituídos por
motoqueiros e bicicletas com motores improvisados dos entregadores de comida. Além
disso, a partir da terceira semana, as obras na região foram retomadas – 7:30 da
manhã até 18h: furadeiras, batidas, pó, como sempre foi o centro de São Paulo. Os
gritos "Fora Bolsonaro" eram comuns nas primeiras semanas. Agora, apenas um silêncio
constrangedor de quem já não se espanta com tamanho desgoverno e tantas pessoas
virando estatísticas. Como é possível notar em uma das minhas gravações, o senhor de
idade que anda pela rua tocando flauta continua aparecendo, quase diariamente. O som
da flauta está agora um pouco mais abafado. Não consigo vê-lo com detalhe (está
longe), mas ele consegue (sabe se lá como) tocar flauta sem deixar de usar sua
máscara improvisada.
A quarentena foi um desafio. Tive que me reinventar como professora, transferindo,
subitamente, um curso presencial para o ambiente on-line, para trabalhar com
pesquisadores – um grupo diversificado, com alunos de várias unidades da USP – com
os quais encontrara apenas uma vez. Desde a segunda aula já estávamos em isolamento
social. A multidisciplinaridade é recorrente em minha prática artística e docente. A
combinação de formatos experimentais e teóricos também. Contudo, a experiência de
integração remota era inédita. Foi inédito também o processo de criação coletiva e
não apenas colaborativa. Intenso, nunca implicou uma diminuição ou contração do
programa das aulas para adequarmos o tempo da aula ao do processo de trabalho
artístico e de especulação em torno do design de interface do projeto. Além das
aulas semanais de 4 horas (ou mais!), fizemos vários encontros para aprofundar e
discutir os rumos do trabalho. A repercussão aconteceu desde as primeiras ações.
Folha de São Paulo, TV Cultura, Rede Globo e sites especializados como o Mecila e o
Jornal da USP registraram as diferentes etapas de nossa pesquisa. Participaremos da
BIM (Bienal de la Imagen en Movimiento) e tudo indica que seguiremos outras
direções. Aprendi muito neste período. Termino, contudo, com uma estranha sensação
de felicidade e tristeza. Encantada, por um lado, com nossa capacidade de criar e
inventar resistências em um momento tão particular como esse que vivemos no Brasil
em pandemia (do coronavírus e da ignorância). Melancólica, por outros, atestando, a
partir da documentação feita dos janelaços, a desmobilização crescente do país, como
se as vertentes mais conservadoras estivessem consumindo nossas forças. Mas, não.
Ainda Estamos Vivos. E seguimos.
De quantas maneiras é possível reconhecer uma cidade? Ao privilegiarmos a visão como
base para apreensão do mundo ao nosso redor colocamos em segundo plano os outros
sentidos, deixando de lado a ideia de que eles fazem parte da experiência urbana e
que nos auxiliam na construção das nossas referências. A mudança das dinâmicas
urbanas imposta pelas primeiras semanas de quarentena foi uma oportunidade de
refletir sobre essa questão. Com a limitação da circulação de pessoas pela cidade,
alguns puderam vivenciar o que seria um cotidiano com menos carros. Com isso, ruídos
que antes eram sufocados pelo ronco demente dos motores ficaram em primeiro plano,
permitindo, através dessa nova paisagem sonora, perceber a cidade com mais clareza:
sua arquitetura, suas pessoas e seus problemas também. Na minha região, um dos
aspectos que mais chamou a atenção foi o aumento da quantidade de moradores de rua e
o agravamento da sua saúde mental. Conversas solitárias e gritos estridentes
cortavam o silêncio, lembrando que se já é um problema social o fato de que nem todo
mundo pode ficar em casa, a situação é ainda mais trágica para aqueles que não tem
uma. A crise sanitária, econômica e política na qual o país afunda também gritou em
nossos ouvidos. Confinados, muitos recorreram às janelas de suas casas para externar
sua angústia: panelas batendo e palavras de ordem ocuparam esse novo espaço público.
Aos poucos, na falta de regras claras de enfrentamento da pandemia, as pessoas foram
desistindo do confinamento e os carros voltaram à rua, encobrindo novamente a cidade
com um véu sonoro nebuloso e trazendo consigo um simulacro de normalidade. Hoje
banaliza-se o desgoverno e a tragédia urbana que nos acompanha desde sempre. Mas
persiste um ruído de fundo: qual é o papel que nos cabe para transformar essa
realidade?
O perigo e incertezas iniciais que assolaram a periferia, e mais especificamente meu
bairro, em torno desta situação extraordinária, nos levaram ao isolamento prévio,
anterior ao período decretado. Durante as primeiras semanas, a sensação de ar
tensionado e o denso silêncio eram raramente interrompidos por sons domésticos. Com
a alteração de nossas rotinas, a dinâmica da casa logo trilhou um novo rumo.
Começamos a passar parte do tempo reclusos em nossos próprios quartos em silêncio,
desempenhando trabalhos e estudos remotos. Algumas poucas vezes sons de
videoconferências e reuniões transpassaram as grossas paredes de concreto, tornando
assim ínfimas as interferências sonoras captadas no período matutino. Ao entardecer,
nos reuníamos para almoçar ao redor da mesa de jantar. Minha interação com meus pais
e irmã esteve sempre acompanhada de sons emitidos pela manipulação de aparelhos
eletrônicos, além de músicas ou filmes que passamos a assistir em conjunto. Neste
período já mais atenuado pelos efeitos da quarentena, foi nítido o aumento do fluxo
de motos; a alta demanda por apps de entrega começou a preencher o vazio sonoro
deixado pela locomoção de carros em nossa rua. As motos deixaram nossos animais de
estimação mais agitados e eles passaram a se juntar ao coro de latidos e rosnados da
vizinhança. Os panelaços evocados pela insatisfação com nossa governança atual,
relatados por amigos e conhecidos, foram inaudíveis daqui. Apenas barulhos de
panelas e utensílios preparando o jantar poderiam ser captados neste horário.
Durante alguns fins de semana foi possível ouvir músicas colocadas por nós e
vizinhos para a execução de tarefas domésticas e contemplação de nossos momentos de
lazer, deitados em redes e balanços, absorvendo o pouco contato que temos com a luz
solar. No início do mês de junho, foi notável a flexibilização do comprometimento de
nossos vizinhos à quarentena. Observa-se sons de festanças, churrascos e carros.
Atualmente, diferentemente de nosso entorno, todos aqui de casa permanecem em
quarentena absoluta, tensos sobre os possíveis desdobramento desta parcial retomada
da vida cotidiana.
Num dia estávamos cogitando a quarentena, dia seguinte, já era ela. E enquanto a
cidade se aquietava num canto, no outro, se esquentava a serpente. De repente um
duelo! Se aquietando, assim como o outono anuncia o inverno, já nas janelas era puro
verão, jamais inverno. E o inverno começou certo, com frio na data certa. Será que a
natureza já consertou ou o frio chegou pra dar tempo de carregar pra longe milhões
de pessoas que jamais deixaremos de amar? Janela da alma, janela indiscreta, toda
janela fertiliza esperança junto de uma criança com máscara de bixinhos, porque
chega de tentar bancar o super herói nacional. Quanta falta de juízo, Que pena. O
Brasil deu pane. A culpa agora é só dele, não mais dela. Brasil, escutai vossas
panelas.
No Brasil de 2020 quando a quarentena se instaura, o primeiro ritual naturalizado
entre cidadã_s da capital São Paulo é produzir (ou escutar) panelaços às 20h30.
Todos os dias. Alguns bairros fazem o “esquenta” do rito e começam às 20h, outros
seguem às 20h30, seja por confusão de comunicação online ou diferentes bolhas das
redes sociais; mas o acontecimento é coletivo. Reconhecer quem está perto, vizinh_s
de cima, vizinh_s da frente, à esquerda, à direita. As janelas passam a apresentar
as vidas nas quais nunca antes havíamos reparado, o entorno com o passar dos dias
vira paisagem cada vez mais familiar. O suporte de relação se torna outro. Colheres
espancando panelas, janelas sendo fechadas raivosamente – o recado está sendo dado e
está sendo recebido. Diante das especificidades de cada panelaço, ou da ausência
dele, um outro ritual é instaurado entre nosso grupo de poucas pessoas: gravar
áudios de um minuto e meio às 10h, às 15h e às 20h30. Todos os dias. Ouvir a cidade,
reparar as janelas, escutar _s vizinh_s, escutar a rua. Comparar o hoje com a
memória que temos de ontem. O mais difícil no rito não é a ação, mas sim sua
manutenção. Acreditar na sua função e encontrar nisso o rigor para a repetição. Uma
prática quase asceta. Panelaços, gravações do entorno, desinfecção das compras que
chegam das ruas, cozinhar todas as refeições, lavar cada louça de todas as refeições
- rituais de quarentena. Cuidar de um acontecimento e cuidar para que ele aconteça
de novo e melhor. Falhar com o ritual, mas continuar na repetição seguinte.
Experiências internas e individuais como que um treino para que retomemos essas
mesmas experiências em contextos externos e coletivos. Falhar, mas continuar. Cuidar
e cuidar para que aconteça melhor.
Gravar os sons ao redor foi o ritual mais consistente que mantive na quarentena. A
escuta gerou uma narrativa episódica, pontuada por faltas e excessos de barulho,
fiel à instabilidade do período. Em dias anteriores ao confinamento, o apartamento
no segundo andar sobre a avenida Paulista era um lugar constantemente invadido pelo
ruído do tráfego. Poucos dias após o decreto, em fins de março, começam a surgir as
antes inaudíveis conversas de passantes e moradores em situação de rua – aliás, cada
dia mais alguns a dividir as mesmas calçadas. Carros com auto-falantes, o da pamonha
ao da associação de bancários, aproveitaram-se do protagonismo fácil em tempos de
suspensão das atividades. Janelaços não aconteceram no entorno próximo, dividido
entre museu, prédio de escritórios e igreja – todos provisoriamente
edifícios-fantasma. Mas já em meados de abril a avenida reconquistou sua posição de
plataforma de protestos. Uma primeira mobilização de entregadores de aplicativos
aconteceu no dia 17, reivindicando direitos de trabalho. Durante todo o fim de
semana seguinte, bolsonaristas escolheram a segurança de seus carros, vans e
caminhões para exibir suas buzinas, hashtags, bandeiras verde e amarelo e gestos de
mau gosto. Lembro-me do estridente roncar de um caminhão no qual se lia “Fora
Dória”, em alta velocidade, no domingo cerca de 21h: pavoroso prelúdio do
relaxamento. Em 24 de abril, nomeei o áudio de “relax_quarentena”. A partir daí, o
aumento gradativo do movimento foi fácil de notar, mesmo com janelas fechadas.
Foram-se, esses cento e poucos dias, arrastados num estado entre o sono e a vigília.
Na vigília, a tentativa de manutenção da vida quando boa parte dela já não era
possível. No sono coube o sonho de um novo mundo.
Março de 2020 é um marco histórico nas projeções em razão do isolamento social
imposto pela pandemia do novo coronavirus. Antes restritas a ações específicas
voltadas à arte e ao ativismo, exibem agora variadas expressões, filmes, desenhos
animados, informações e prestação de serviços. E qualquer um, com projetor, internet
e computador, pode reproduzi-las.
Essa percepção surgiu quando ouvi, pela primeira vez, no prédio vizinho ao meu, na
Vila Mariana, bairro da zona sul de São Paulo, panelaços em protesto ao negacionismo
do presidente Jair Bolsonaro em relação à Covid-19.
No dia 21 daquele mês, inflamados por seus discursos contra as regras sanitárias
impostas e em defesa da economia acima de tudo, uma canção chamou a atenção. A
música entoada era “Bella Ciao”. Simbolismo maior não haveria naquela ocasião, com a
apropriação do hino da resistência fascista na Itália durante a Segunda Guerra
Mundial, cujo fim completou 75 anos em maio passado.
“Bella Ciao” me levou a observar a reação dos moradores ao redor a cada ação de
Bolsonaro, como as demissões de seus ministros mais populares, Luiz Henrique
Mandetta (Saúde) e Sergio Moro (Justiça), e seus discursos que desorientam à
população sobre questões relacionadas à saúde e à economia.
A esses “janelaços”, como ficaram conhecidos esses protestos, se juntaram as
inéditas projeções temporárias de março, em um movimento inédito que cobriu não só a
capital paulistana com cores e sons, mas todo o país.
Nesse contexto, incluem-se os sons da cidade, como de animais ou filmes, que antes
estavam escondidos pelo barulho da cidade, tornaram-se mais intensos neste período
devido ao afastamento das pessoas das ruas, confinadas em suas moradas. O coro em
vozes se tornou a primazia em manifestações não somente em janelas, mas também em
varandas.
Como pesquisadora, tive o privilégio de gravar alguns bastante contundentes que,
afinados, infelizmente, deixaram a paisagem urbana das minhas redondezas. Hoje,
vizinhos, ouvimos o silêncio.
O apartamento é de fundos, encalacrado entre outros 3 prédios em uma rua
habitualmente tranquila. O silêncio já imperava como de costume, o que só se
acentuou durante a reclusão da pandemia. Ao longe, de quando em quando, somente o
som de urgência das motocicletas rompia este silêncio, mas aos poucos o ouvido foi
em busca de outros sons que também furavam esta massa obscura do mutismo.
Crianças brincando, um cão latindo. Uma carreata surreal pedindo a abertura do
comércio, com um grito ao longe “Fora Bolsonaro!” nos redimindo. O vendedor de
amendoins que semanalmente já furava a noite com seu apito de trem, nem aí que
estava na quarentena.
Num diálogo distante o receio de testemunhar, qual Antonioni; um “Blow Up” sonoro.
ro.
Ao longo dos dias captando os áudios para o projeto fui desenvolvendo um tipo
diferente de sensibilidade. Antes, o esforço era para ignorar os barulhos de fora, e
aos poucos, fui treinando a audição e a atenção para tudo o que acontecia ao redor.
Além dos horários marcados, a cada evento sonoro interessante, corria para a janela
e gravava. Comecei a observar que a rua ficava deserta e o prédio onde moro, antes
silencioso, ganhava vida. Apesar de não poder enxergar nada, eu sabia que os meus
arredores se transformavam constantemente, o que eu não via, mas escutava. Comecei a
notar sons que antes imperceptíveis, talvez por não estarem ali, ou simplesmente
porque antes estavam sobrepostos com outros barulhos. No início, o silêncio marcava
o dia, e os protestos marcavam a noite. Com o passar do tempo, o barulho diurno
retornou e com ele a constatação que o som dos pássaros eram, na verdade, um augúrio
de morte. De repente, mais de 60 mil. E dentre todos os sons, os gritos de protesto,
os gritos de socorro, os gritos do carro de som que o sindicato dos banqueiros
contratou em batalha de áudio com o som do carro do gás, o silêncio inicial da
quarentena parece uma memória longínqua que quase nem existiu.
Uma visita ao que foi a minha cidade por anos, inesperadamente, virou o telão de
fundo de días, que viraram meses. Uma cápsula do tempo, de lugar nenhum, de cidade
nenhuma, apenas existente pelos sons e imagens que se passam pelas janelas de um
apartamento no décimo andar.
Terça-feira 25 de maio, 20 horas. Para quem nunca teve uma referência clara de
nacionalidade, um episódio de isolamento social como esse, parece fazer com que da
desconexão e da monotonia emerja uma certa empolgação e identificação pelo único
contexto que se tem. Aplausos e um "viva Chile"... é para nos dar forças? Não.
Acabou de morrer o primeiro médico infectado de Covid em Santiago.
Primeiro sábado de junho, 15 horas. A luz do outono que de repente invade esse, meu
antigo quarto, era uma das coisas que mais sentia falta em São Paulo. Ainda mais
quando me sentia uma eterna estrangeira. Agora, aquela luz vem acompanhada de sons
papagaios e até um beija flor que visitou o outro dia minha varanda.
Alguma sexta-feira de junho, 20 horas. Saí na varanda porque ouvi gritos. Não dava
para ver muito bem de onde vinham, mas parece ser que era o vizinho de trás. Ele
gritava desesperado, agressivo, violentando a sabe se lá quem. Pouco faltou para que
os vizinhos começaram a xingá-lo de volta. Esse tipo de situações me deixam muito
angustiada, talvez porque não entendo o que está acontecendo, talvez porque sei de
gente que tem se jogado de um desses prédios, ainda quando a palavra “pandemia” e
tudo o que ela reverbera, era algo distante.
Final de março, ruas desertas, o silêncio se impõe. A paisagem sonora muda. Um
ônibus desvia a rota e sem explicação passa por nossa rua às 7h da manhã e o barulho
extremo marca a primeira semana de isolamento. Há pessoas de casa em casa pedindo
ajuda. Numa esquina, taxistas comentam que o vírus é bobagem. Somente em abril, o
ponto se esvazia totalmente. A ausência de passantes e carros evidencia mais a
proximidade do Parque e o concerto dos pássaros. Latidos ocasionais e ruídos
domésticos se potencializam. Um fluxo crescente de motoboys interrompe a
tranquilidade. Escapamentos alterados e buzinas estridentes se ouvem em todas as
horas. E o contraste entre silêncio e ruído ganha relevância. Alguns trabalhadores
continuam a circular, sem proteção. O conceito maleável de “serviço essencial” criou
figuras como “delivery de churrrasquinho” – tudo muito surreal. Ambulantes, em seus
carros anunciam no megafone “…Cândida, ovos, laranja” em uma disputa cacofônica por
clientes. E velhinhos e donas de casa acorrem, acumulando-se sem cuidado a desafiar
os riscos da exposição ao vírus. Em abril, adultos e crianças passeiam com seus
cachorros, se exercitam. Alguns sem máscara, ignoram as recomendações para ficar em
casa. E a cada novo discurso presidencial, mais gente nas ruas. Os panelaços na
vizinhança marcaram os protestos contra o desgoverno. E expuseram também seus
apoiadores coléricos, a incitar violência das janelas. Triste perceber a
incapacidade de diálogo, mesmo com a gravidade da pandemia, ampliação exponencial de
infectados e avanço das mortes no país.
O registro de áudios foi um exercício físico, porque tive que treinar meu ouvido
para captar aspectos interessantes dos sons. Foi também um exercício analítico,
porque me proporcionou elementos para entender a dinâmica espacial da pandemia. Já
iniciei os registros sabendo que no meu bairro não iria ouvir gritos de protesto nas
janelas. No lugar das manifestações políticas, ouvi conversas de vizinhos do outro
lado da rua, crianças brincando no estacionamento ou na rua, música alta que fazia
as janelas de casa tremerem, barulho de construção civil há algumas quadras, um
vizinho serrando, martelando, furando e levantando mais um andar na laje. Às vezes,
alguns vizinhos cantavam músicas cristãs ou ouviam pregações no rádio. Em um
primeiro momento, essa paisagem sonora me assustou, porque ela é igual ao cotidiano
pré-quarentena. Os encontros na rua, com música e churrasco, continuavam acontecendo
- talvez com menor frequência, mas ainda ocorrendo. Os registros captaram sons do
outro lado da rua, onde há uma favela. Em contraste, no condomínio onde moro, o
comum é o silêncio, às vezes quebrado por um estudante de flauta alguns andares
acima. O sino da igreja parou de tocar, assim como os avisos do padre responsável
pela comunidade. Observar o movimento de pessoas nas ruas ao entorno me fez perceber
que não houve isolamento social de verdade por aqui. E, com isso, assisti o vírus
chegar nos bairros periféricos através de trabalhadores e trabalhadoras no
transporte público. A necropolítica, que reproduz a desigualdade na cidade,
mostrou-se ser uma “necromobilidade” também: aqui ninguém tem autonomia para decidir
sobre os lugares onde pode viver ou morrer.