Relatos



Aline Nakamura

Atibaia, SP
23°11'23.4"S 46°55'81.6"W

Março e Abril/2020: Últimos meses na casa da Vila Rica, área residencial. Vista maravilhosa das montanhas no horizonte. Pássaros ao longe. O silêncio de anos fora quebrado pelas máquinas e sirenes de construção civil. Apitos repetitivos. Pedras rolando das caçambas. Como os trabalhadores não param, nem nos feriados? O som é só um prenúncio do que virá. E do que não verei mais. Silêncio à noite. Nenhum “Fora Bolsonaro”. Nenhum panelaço ou janelaço. Maio e Junho/2020: Mudei-me para a região central. Barulho de motos e carros durante a semana. Alguns pássaros ao longe. Dia 23/05: Um carro de som (na verdade, vi que era um ônibus depois) pedia doação de alimentos. Era de uma igreja evangélica de Nazaré Paulista. E dizia: “Hoje é Natal”! Doei um pacote de bolacha. Fiquei pensando que podia realmente ser Natal. E não termos mais pandemia e ‘pandemônio’. Será? Dia 24/05: Depois de tanto tempo, chuva! O melhor barulho! Eu descobri uma coisa que me deixou triste: os pássaros que eu ouvia da janela na nova casa eram de uma loja que se localiza a alguns metros de minha casa. Presos. Este lugar estava aberto no dia de Corpus Christi, dia 11/06. Casa geminada. Vizinha faz barulho. Móveis arrastando, sempre em torno de 23h. Gritos com os filhos. Nunca ouvi suas vozes. Ultimamente, diminuíram os ruídos. 16/06. O barulho da casa vizinha voltou. Falo alto. Falo baixo. Há um galo que canta de madrugada, entre 6h e 7h da manhã ou por volta das 10h da manhã. Da distância que ouço, não me incomoda.

Ana Paula Leal

República, São Paulo, SP
23°32'28.9"S 46°38'37.1"W

Não houve um momento de silêncio propriamente dito durante o meu isolamento. Houve, sim, a diminuição do ruído, a substituição dos sons, mas não existiu um único momento de silêncio. Deixei de ouvir aviões, ônibus, carros e britadeiras e passei a ouvir pássaros, crianças, discussões vizinhas e os janelaços. Em alguns momentos isso causou em mim uma espécie de cólera. Essa nova configuração sonora do meu cotidiano implicava saber que havia uma configuração diferente do mundo externo ao meu apartamento. E depois de um período esse sentimento se atenuou, mas não mais por estar ciente dessa nova configuração e enfim aceitá-la, e sim por saber de seu completo abandono. Os carros, as britadeiras e as vozes que passam pelas ruas em aglomerações, estavam todos presentes, de volta em alto e bom som, mas não no momento certo. Cada novo ruído agora se parece com uma espécie de lembrete de cada uma das perdas que sofremos e das que ainda vamos sofrer. As construções que rodeiam o meu lar, as buzinas, as conversas e os helicópteros me fazem lembrar a todo instante como ainda há muito a ser enfrentado. Não sei se haverá um segundo isolamento como ocorreu em março, já não ouço mais os pássaros e os vizinhos agora não discutem mais pois retornaram aos seus ambientes de trabalho. Em breve as crianças voltarão para as escolas, e os janelaços já não ocorrem mais. Entretanto, enquanto escrevo esse texto ouço as buzinas dos entregadores em protesto e os helicópteros que acompanham a movimentação, e essa é a primeira vez desde o fim do isolamento que um som tão estridente me vez sentir uma espécie de alento em vez de pura angústia.

Bruno Moreschi

Santa Cecília, São Paulo, SP
23°32'19"S 46°39'12"W

Nos primeiros dias, tive uma sensação de que minha região estava mais silenciosa do que antes. Talvez as pessoas estivessem ainda chocadas com o início do isolamento. Mas as semanas (sempre iguais) foram passando e a naturalização também. Primeiro, notei que na verdade não estava mais silencioso do que antes da pandemia, apenas os barulhos eram outros – as conversas de quem andava na rua foram substituídos por motoqueiros e bicicletas com motores improvisados dos entregadores de comida. Além disso, a partir da terceira semana, as obras na região foram retomadas – 7:30 da manhã até 18h: furadeiras, batidas, pó, como sempre foi o centro de São Paulo. Os gritos "Fora Bolsonaro" eram comuns nas primeiras semanas. Agora, apenas um silêncio constrangedor de quem já não se espanta com tamanho desgoverno e tantas pessoas virando estatísticas. Como é possível notar em uma das minhas gravações, o senhor de idade que anda pela rua tocando flauta continua aparecendo, quase diariamente. O som da flauta está agora um pouco mais abafado. Não consigo vê-lo com detalhe (está longe), mas ele consegue (sabe se lá como) tocar flauta sem deixar de usar sua máscara improvisada.

Giselle Beiguelman

Consolação, São Paulo, SP
23°32'55.5"S 46°39'01.9"W

A quarentena foi um desafio. Tive que me reinventar como professora, transferindo, subitamente, um curso presencial para o ambiente on-line, para trabalhar com pesquisadores – um grupo diversificado, com alunos de várias unidades da USP – com os quais encontrara apenas uma vez. Desde a segunda aula já estávamos em isolamento social. A multidisciplinaridade é recorrente em minha prática artística e docente. A combinação de formatos experimentais e teóricos também. Contudo, a experiência de integração remota era inédita. Foi inédito também o processo de criação coletiva e não apenas colaborativa. Intenso, nunca implicou uma diminuição ou contração do programa das aulas para adequarmos o tempo da aula ao do processo de trabalho artístico e de especulação em torno do design de interface do projeto. Além das aulas semanais de 4 horas (ou mais!), fizemos vários encontros para aprofundar e discutir os rumos do trabalho. A repercussão aconteceu desde as primeiras ações. Folha de São Paulo, TV Cultura, Rede Globo e sites especializados como o Mecila e o Jornal da USP registraram as diferentes etapas de nossa pesquisa. Participaremos da BIM (Bienal de la Imagen en Movimiento) e tudo indica que seguiremos outras direções. Aprendi muito neste período. Termino, contudo, com uma estranha sensação de felicidade e tristeza. Encantada, por um lado, com nossa capacidade de criar e inventar resistências em um momento tão particular como esse que vivemos no Brasil em pandemia (do coronavírus e da ignorância). Melancólica, por outros, atestando, a partir da documentação feita dos janelaços, a desmobilização crescente do país, como se as vertentes mais conservadoras estivessem consumindo nossas forças. Mas, não. Ainda Estamos Vivos. E seguimos.

Helena Cavalheiro

Higienópolis, São Paulo, SP
23°32'42.4"S 46°39'15.2"W

De quantas maneiras é possível reconhecer uma cidade? Ao privilegiarmos a visão como base para apreensão do mundo ao nosso redor colocamos em segundo plano os outros sentidos, deixando de lado a ideia de que eles fazem parte da experiência urbana e que nos auxiliam na construção das nossas referências. A mudança das dinâmicas urbanas imposta pelas primeiras semanas de quarentena foi uma oportunidade de refletir sobre essa questão. Com a limitação da circulação de pessoas pela cidade, alguns puderam vivenciar o que seria um cotidiano com menos carros. Com isso, ruídos que antes eram sufocados pelo ronco demente dos motores ficaram em primeiro plano, permitindo, através dessa nova paisagem sonora, perceber a cidade com mais clareza: sua arquitetura, suas pessoas e seus problemas também. Na minha região, um dos aspectos que mais chamou a atenção foi o aumento da quantidade de moradores de rua e o agravamento da sua saúde mental. Conversas solitárias e gritos estridentes cortavam o silêncio, lembrando que se já é um problema social o fato de que nem todo mundo pode ficar em casa, a situação é ainda mais trágica para aqueles que não tem uma. A crise sanitária, econômica e política na qual o país afunda também gritou em nossos ouvidos. Confinados, muitos recorreram às janelas de suas casas para externar sua angústia: panelas batendo e palavras de ordem ocuparam esse novo espaço público. Aos poucos, na falta de regras claras de enfrentamento da pandemia, as pessoas foram desistindo do confinamento e os carros voltaram à rua, encobrindo novamente a cidade com um véu sonoro nebuloso e trazendo consigo um simulacro de normalidade. Hoje banaliza-se o desgoverno e a tragédia urbana que nos acompanha desde sempre. Mas persiste um ruído de fundo: qual é o papel que nos cabe para transformar essa realidade?

Iago Santos

Brasilândia, São Paulo, SP
23°45'83.0''S 46°69'82.2''W

O perigo e incertezas iniciais que assolaram a periferia, e mais especificamente meu bairro, em torno desta situação extraordinária, nos levaram ao isolamento prévio, anterior ao período decretado. Durante as primeiras semanas, a sensação de ar tensionado e o denso silêncio eram raramente interrompidos por sons domésticos. Com a alteração de nossas rotinas, a dinâmica da casa logo trilhou um novo rumo. Começamos a passar parte do tempo reclusos em nossos próprios quartos em silêncio, desempenhando trabalhos e estudos remotos. Algumas poucas vezes sons de videoconferências e reuniões transpassaram as grossas paredes de concreto, tornando assim ínfimas as interferências sonoras captadas no período matutino. Ao entardecer, nos reuníamos para almoçar ao redor da mesa de jantar. Minha interação com meus pais e irmã esteve sempre acompanhada de sons emitidos pela manipulação de aparelhos eletrônicos, além de músicas ou filmes que passamos a assistir em conjunto. Neste período já mais atenuado pelos efeitos da quarentena, foi nítido o aumento do fluxo de motos; a alta demanda por apps de entrega começou a preencher o vazio sonoro deixado pela locomoção de carros em nossa rua. As motos deixaram nossos animais de estimação mais agitados e eles passaram a se juntar ao coro de latidos e rosnados da vizinhança. Os panelaços evocados pela insatisfação com nossa governança atual, relatados por amigos e conhecidos, foram inaudíveis daqui. Apenas barulhos de panelas e utensílios preparando o jantar poderiam ser captados neste horário. Durante alguns fins de semana foi possível ouvir músicas colocadas por nós e vizinhos para a execução de tarefas domésticas e contemplação de nossos momentos de lazer, deitados em redes e balanços, absorvendo o pouco contato que temos com a luz solar. No início do mês de junho, foi notável a flexibilização do comprometimento de nossos vizinhos à quarentena. Observa-se sons de festanças, churrascos e carros. Atualmente, diferentemente de nosso entorno, todos aqui de casa permanecem em quarentena absoluta, tensos sobre os possíveis desdobramento desta parcial retomada da vida cotidiana.

Icaro de Abreu

São Paulo, Cerqueira Cesar, SP
23°33'40.8"S 46°40'13.0"W

Num dia estávamos cogitando a quarentena, dia seguinte, já era ela. E enquanto a cidade se aquietava num canto, no outro, se esquentava a serpente. De repente um duelo! Se aquietando, assim como o outono anuncia o inverno, já nas janelas era puro verão, jamais inverno. E o inverno começou certo, com frio na data certa. Será que a natureza já consertou ou o frio chegou pra dar tempo de carregar pra longe milhões de pessoas que jamais deixaremos de amar? Janela da alma, janela indiscreta, toda janela fertiliza esperança junto de uma criança com máscara de bixinhos, porque chega de tentar bancar o super herói nacional. Quanta falta de juízo, Que pena. O Brasil deu pane. A culpa agora é só dele, não mais dela. Brasil, escutai vossas panelas.

Laura Salerno

Consolação, São Paulo, SP
23°33'06.9"S 46°39'17.1"W

No Brasil de 2020 quando a quarentena se instaura, o primeiro ritual naturalizado entre cidadã_s da capital São Paulo é produzir (ou escutar) panelaços às 20h30. Todos os dias. Alguns bairros fazem o “esquenta” do rito e começam às 20h, outros seguem às 20h30, seja por confusão de comunicação online ou diferentes bolhas das redes sociais; mas o acontecimento é coletivo. Reconhecer quem está perto, vizinh_s de cima, vizinh_s da frente, à esquerda, à direita. As janelas passam a apresentar as vidas nas quais nunca antes havíamos reparado, o entorno com o passar dos dias vira paisagem cada vez mais familiar. O suporte de relação se torna outro. Colheres espancando panelas, janelas sendo fechadas raivosamente – o recado está sendo dado e está sendo recebido. Diante das especificidades de cada panelaço, ou da ausência dele, um outro ritual é instaurado entre nosso grupo de poucas pessoas: gravar áudios de um minuto e meio às 10h, às 15h e às 20h30. Todos os dias. Ouvir a cidade, reparar as janelas, escutar _s vizinh_s, escutar a rua. Comparar o hoje com a memória que temos de ontem. O mais difícil no rito não é a ação, mas sim sua manutenção. Acreditar na sua função e encontrar nisso o rigor para a repetição. Uma prática quase asceta. Panelaços, gravações do entorno, desinfecção das compras que chegam das ruas, cozinhar todas as refeições, lavar cada louça de todas as refeições - rituais de quarentena. Cuidar de um acontecimento e cuidar para que ele aconteça de novo e melhor. Falhar com o ritual, mas continuar na repetição seguinte. Experiências internas e individuais como que um treino para que retomemos essas mesmas experiências em contextos externos e coletivos. Falhar, mas continuar. Cuidar e cuidar para que aconteça melhor.

Livia Debbané

Bela Vista, São Paulo, SP
23°33'21.8"S 46°39'43.0"W

Gravar os sons ao redor foi o ritual mais consistente que mantive na quarentena. A escuta gerou uma narrativa episódica, pontuada por faltas e excessos de barulho, fiel à instabilidade do período. Em dias anteriores ao confinamento, o apartamento no segundo andar sobre a avenida Paulista era um lugar constantemente invadido pelo ruído do tráfego. Poucos dias após o decreto, em fins de março, começam a surgir as antes inaudíveis conversas de passantes e moradores em situação de rua – aliás, cada dia mais alguns a dividir as mesmas calçadas. Carros com auto-falantes, o da pamonha ao da associação de bancários, aproveitaram-se do protagonismo fácil em tempos de suspensão das atividades. Janelaços não aconteceram no entorno próximo, dividido entre museu, prédio de escritórios e igreja – todos provisoriamente edifícios-fantasma. Mas já em meados de abril a avenida reconquistou sua posição de plataforma de protestos. Uma primeira mobilização de entregadores de aplicativos aconteceu no dia 17, reivindicando direitos de trabalho. Durante todo o fim de semana seguinte, bolsonaristas escolheram a segurança de seus carros, vans e caminhões para exibir suas buzinas, hashtags, bandeiras verde e amarelo e gestos de mau gosto. Lembro-me do estridente roncar de um caminhão no qual se lia “Fora Dória”, em alta velocidade, no domingo cerca de 21h: pavoroso prelúdio do relaxamento. Em 24 de abril, nomeei o áudio de “relax_quarentena”. A partir daí, o aumento gradativo do movimento foi fácil de notar, mesmo com janelas fechadas. Foram-se, esses cento e poucos dias, arrastados num estado entre o sono e a vigília. Na vigília, a tentativa de manutenção da vida quando boa parte dela já não era possível. No sono coube o sonho de um novo mundo.

Luciana Moherdaui

Vila Mariana, São Paulo, SP
23.589.337 - 46.634117

Março de 2020 é um marco histórico nas projeções em razão do isolamento social imposto pela pandemia do novo coronavirus. Antes restritas a ações específicas voltadas à arte e ao ativismo, exibem agora variadas expressões, filmes, desenhos animados, informações e prestação de serviços. E qualquer um, com projetor, internet e computador, pode reproduzi-las. Essa percepção surgiu quando ouvi, pela primeira vez, no prédio vizinho ao meu, na Vila Mariana, bairro da zona sul de São Paulo, panelaços em protesto ao negacionismo do presidente Jair Bolsonaro em relação à Covid-19. No dia 21 daquele mês, inflamados por seus discursos contra as regras sanitárias impostas e em defesa da economia acima de tudo, uma canção chamou a atenção. A música entoada era “Bella Ciao”. Simbolismo maior não haveria naquela ocasião, com a apropriação do hino da resistência fascista na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, cujo fim completou 75 anos em maio passado. “Bella Ciao” me levou a observar a reação dos moradores ao redor a cada ação de Bolsonaro, como as demissões de seus ministros mais populares, Luiz Henrique Mandetta (Saúde) e Sergio Moro (Justiça), e seus discursos que desorientam à população sobre questões relacionadas à saúde e à economia. A esses “janelaços”, como ficaram conhecidos esses protestos, se juntaram as inéditas projeções temporárias de março, em um movimento inédito que cobriu não só a capital paulistana com cores e sons, mas todo o país. Nesse contexto, incluem-se os sons da cidade, como de animais ou filmes, que antes estavam escondidos pelo barulho da cidade, tornaram-se mais intensos neste período devido ao afastamento das pessoas das ruas, confinadas em suas moradas. O coro em vozes se tornou a primazia em manifestações não somente em janelas, mas também em varandas. Como pesquisadora, tive o privilégio de gravar alguns bastante contundentes que, afinados, infelizmente, deixaram a paisagem urbana das minhas redondezas. Hoje, vizinhos, ouvimos o silêncio.

Marcos Assis Piffer

Boqueirão, Santos, SP
23°57'58.8"S 46°19'31.7"W

O apartamento é de fundos, encalacrado entre outros 3 prédios em uma rua habitualmente tranquila. O silêncio já imperava como de costume, o que só se acentuou durante a reclusão da pandemia. Ao longe, de quando em quando, somente o som de urgência das motocicletas rompia este silêncio, mas aos poucos o ouvido foi em busca de outros sons que também furavam esta massa obscura do mutismo. Crianças brincando, um cão latindo. Uma carreata surreal pedindo a abertura do comércio, com um grito ao longe “Fora Bolsonaro!” nos redimindo. O vendedor de amendoins que semanalmente já furava a noite com seu apito de trem, nem aí que estava na quarentena. Num diálogo distante o receio de testemunhar, qual Antonioni; um “Blow Up” sonoro. ro.

Matheus da Rocha Montanari

Bela Vista, São Paulo, SP
23.551403, 46.640247

Ao longo dos dias captando os áudios para o projeto fui desenvolvendo um tipo diferente de sensibilidade. Antes, o esforço era para ignorar os barulhos de fora, e aos poucos, fui treinando a audição e a atenção para tudo o que acontecia ao redor. Além dos horários marcados, a cada evento sonoro interessante, corria para a janela e gravava. Comecei a observar que a rua ficava deserta e o prédio onde moro, antes silencioso, ganhava vida. Apesar de não poder enxergar nada, eu sabia que os meus arredores se transformavam constantemente, o que eu não via, mas escutava. Comecei a notar sons que antes imperceptíveis, talvez por não estarem ali, ou simplesmente porque antes estavam sobrepostos com outros barulhos. No início, o silêncio marcava o dia, e os protestos marcavam a noite. Com o passar do tempo, o barulho diurno retornou e com ele a constatação que o som dos pássaros eram, na verdade, um augúrio de morte. De repente, mais de 60 mil. E dentre todos os sons, os gritos de protesto, os gritos de socorro, os gritos do carro de som que o sindicato dos banqueiros contratou em batalha de áudio com o som do carro do gás, o silêncio inicial da quarentena parece uma memória longínqua que quase nem existiu.

Paula Monroy

Las Condes, Santiago de Chile
33°24'28.2"S 70°32'53.9"W

Uma visita ao que foi a minha cidade por anos, inesperadamente, virou o telão de fundo de días, que viraram meses. Uma cápsula do tempo, de lugar nenhum, de cidade nenhuma, apenas existente pelos sons e imagens que se passam pelas janelas de um apartamento no décimo andar. Terça-feira 25 de maio, 20 horas. Para quem nunca teve uma referência clara de nacionalidade, um episódio de isolamento social como esse, parece fazer com que da desconexão e da monotonia emerja uma certa empolgação e identificação pelo único contexto que se tem. Aplausos e um "viva Chile"... é para nos dar forças? Não. Acabou de morrer o primeiro médico infectado de Covid em Santiago. Primeiro sábado de junho, 15 horas. A luz do outono que de repente invade esse, meu antigo quarto, era uma das coisas que mais sentia falta em São Paulo. Ainda mais quando me sentia uma eterna estrangeira. Agora, aquela luz vem acompanhada de sons papagaios e até um beija flor que visitou o outro dia minha varanda. Alguma sexta-feira de junho, 20 horas. Saí na varanda porque ouvi gritos. Não dava para ver muito bem de onde vinham, mas parece ser que era o vizinho de trás. Ele gritava desesperado, agressivo, violentando a sabe se lá quem. Pouco faltou para que os vizinhos começaram a xingá-lo de volta. Esse tipo de situações me deixam muito angustiada, talvez porque não entendo o que está acontecendo, talvez porque sei de gente que tem se jogado de um desses prédios, ainda quando a palavra “pandemia” e tudo o que ela reverbera, era algo distante.

Sandra Kaffka

Cambuci-Aclimação, São Paulo, SP
23°34'15.7"S 46°37'31.0"W

Final de março, ruas desertas, o silêncio se impõe. A paisagem sonora muda. Um ônibus desvia a rota e sem explicação passa por nossa rua às 7h da manhã e o barulho extremo marca a primeira semana de isolamento. Há pessoas de casa em casa pedindo ajuda. Numa esquina, taxistas comentam que o vírus é bobagem. Somente em abril, o ponto se esvazia totalmente. A ausência de passantes e carros evidencia mais a proximidade do Parque e o concerto dos pássaros. Latidos ocasionais e ruídos domésticos se potencializam. Um fluxo crescente de motoboys interrompe a tranquilidade. Escapamentos alterados e buzinas estridentes se ouvem em todas as horas. E o contraste entre silêncio e ruído ganha relevância. Alguns trabalhadores continuam a circular, sem proteção. O conceito maleável de “serviço essencial” criou figuras como “delivery de churrrasquinho” – tudo muito surreal. Ambulantes, em seus carros anunciam no megafone “…Cândida, ovos, laranja” em uma disputa cacofônica por clientes. E velhinhos e donas de casa acorrem, acumulando-se sem cuidado a desafiar os riscos da exposição ao vírus. Em abril, adultos e crianças passeiam com seus cachorros, se exercitam. Alguns sem máscara, ignoram as recomendações para ficar em casa. E a cada novo discurso presidencial, mais gente nas ruas. Os panelaços na vizinhança marcaram os protestos contra o desgoverno. E expuseram também seus apoiadores coléricos, a incitar violência das janelas. Triste perceber a incapacidade de diálogo, mesmo com a gravidade da pandemia, ampliação exponencial de infectados e avanço das mortes no país.

Vinicius Almeida

Jardim Belém, São Paulo, SP
23°29'37.5"S 46°28'12.7"W

O registro de áudios foi um exercício físico, porque tive que treinar meu ouvido para captar aspectos interessantes dos sons. Foi também um exercício analítico, porque me proporcionou elementos para entender a dinâmica espacial da pandemia. Já iniciei os registros sabendo que no meu bairro não iria ouvir gritos de protesto nas janelas. No lugar das manifestações políticas, ouvi conversas de vizinhos do outro lado da rua, crianças brincando no estacionamento ou na rua, música alta que fazia as janelas de casa tremerem, barulho de construção civil há algumas quadras, um vizinho serrando, martelando, furando e levantando mais um andar na laje. Às vezes, alguns vizinhos cantavam músicas cristãs ou ouviam pregações no rádio. Em um primeiro momento, essa paisagem sonora me assustou, porque ela é igual ao cotidiano pré-quarentena. Os encontros na rua, com música e churrasco, continuavam acontecendo - talvez com menor frequência, mas ainda ocorrendo. Os registros captaram sons do outro lado da rua, onde há uma favela. Em contraste, no condomínio onde moro, o comum é o silêncio, às vezes quebrado por um estudante de flauta alguns andares acima. O sino da igreja parou de tocar, assim como os avisos do padre responsável pela comunidade. Observar o movimento de pessoas nas ruas ao entorno me fez perceber que não houve isolamento social de verdade por aqui. E, com isso, assisti o vírus chegar nos bairros periféricos através de trabalhadores e trabalhadoras no transporte público. A necropolítica, que reproduz a desigualdade na cidade, mostrou-se ser uma “necromobilidade” também: aqui ninguém tem autonomia para decidir sobre os lugares onde pode viver ou morrer.